Foto: Filipa Aurélio

Entrevista: Zudizilla

Pedro Pinhel
Original Pinheiros Style
6 min readSep 16, 2019

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Trocamos uma ideia com o rapper Zudizilla, que acaba de lançar seu segundo disco, o impressionante “Zulu, Vol. 1: De Onde Eu Possa Alcançar o Céu Sem Deixar o Chão”. Vivendo em São Paulo há pouco mais de um ano, o MC nascido em Pelotas (RS) falou sobre vários assuntos: o novo álbum, suas origens, racismo, as dificuldades de se fazer rap fora do eixo Rio-São Paulo, a conexão com o DJ Nyack, seu processo de escrita, suas inspirações — e ainda teve que responder, na bucha, à nossa clássica, desafiadora e irritante pergunta dos 10 melhores discos. Confira a seguir como foi o interrogatório:

Seu primeiro trabalho, “Faça a Coisa Certa”, foi lançado no final de 2015. É um disco bem diferente do novo. O que mudou de lá pra cá?

Não aguentava mais esse disco, e lancei dois dias antes do final do ano. Me disseram que seria um tiro no pé, mas não foi. Acabou saindo nas listas de melhores discos de 2015 e 2016 (risos). Quem mudou fui eu mesmo. O disco segue praticamente a mesma temática. Eu sou monotemático, sempre falo de problemas étnicos como recorte pra quase tudo. Mas o locutor muda enquanto o mundo muda, e é natural que um trabalho soe diferente do outro. Primo pela qualidade e pela evolução das obras, e não pela repetição. Nunca consegui fazer duas coisas iguais na vida, se pá já teria ganho uma grana repetindo coisas que fiz anteriormente. Mas ok.

Você é de Pelotas (RS), e começou a fazer rap por lá. Ouvi uma brincadeira aí, que a cidade é "a Mississipi brasileira". Como você vê suas origens? É difícil fazer rap no sul?

Sou de Pelotas, no Rio Grande do Sul, "o Alabama do Brasil", "a Mississipi brasileira"… não enxergo minhas origens por lá. Fomos largados à própria morte, nos juntando e nos criando em comunidades por pura sobrevivência. As relações estabelecidas no estado onde nasci são segregacionistas até hoje. É difícil fazer rap em qualquer lugar, e no sul tem o lance do tradicionalismo que atrapalha um pouco, mas também legitima discursos quando se aponta pros alvos certos. É isso que eu faço. A tentativa do inimigo de me eliminar me deixou BEM mais forte.

Como rolou a conexão com o Nyack? E a vinda pra São Paulo?

Conheci o Fer (Fernando Nyack, aka DJ Nyack) no projeto Pulso, em 2016, mas a gente já havia se cruzado em outras oportunidades, quando abri shows do Emicida. Minha vinda pra SP rolou de uma forma muito brusca e pouco natural. Se algumas paradas bem tristes não tivessem acontecido no sul eu ainda estaria por lá. Passei esse panorama pro Nyack no final de 2017. Ele já havia escutado meu primeiro disco, e gentilmente estendeu a mão pra que eu não padecesse na pequenópolis.

“Zulu, Vol. 1(…)” fala muito sobre sensibilidade. Você se considera um cara sensível?

Eu acho que todo cara, toda mina, todo ser humano não submetido a condicionamento comportamental ou a bruscas cisões em sua vida é, por natureza, sensível. Somos a flor e a rocha da natureza, em um corpo flácido e bípede. Eu discuto sensibilidade como uma forma de alertar meus irmãos sobre o fato de que o auto-ódio faz com que odiemos todos aqueles que se assemelham a nós, e aqui eu to falando especificamente de gente preta.
Minha sensibilidade é fruto de uma negação dessa manobra da sociedade de animalizar pessoas pretas. É uma resposta emocional a uma armadilha social que nos expõe à condição de sub-raça. O amor preto é revolucionário. Especialmente quando é coletivo e comunitário. O amor é um quilombo.

Como rolou o processo criativo do disco? Você participou da criação dos beats? Como foi o contato com os beatmakers?

Cara, nadinha. Esse disco é mais uma daquelas obras que crio e depois olho pra saber o que fiz. Fui catando beats daqui e dali, alguns que já tinha, outros que substituíram alguns dos originais, e no final acho que rolou uma coerência. Tem coisa muito antiga, que eu inclusive nem colocaria se soubesse de algumas situações desconfortáveis que viriam a acontecer, e acabei não podendo tirar por fazer parte do conceito do projeto. Esse disco veio surgindo de uma forma bem natural. Tem muita coisa que não entrou, justamente pra manter essa coerência estética e sonora.

Frame do vídeo de "Faça a Coisa Certa", de 2016

Como é seu processo pra escrever as rimas? Qual a ideia por trás de “alcançar o céu sem deixar o chão”?

Letras surgem nos mais variados momentos, só é preciso estar livre pra perceber, e ter um bom leque de palavras que representem essas situações, às vezes imaginárias, outras vezes reais. A ideia de céu e chão tem muitas formas de percepção, entre elas a vontade de fazer um disco que bata pro mundo inteiro estando em Pelotas. Ou a ideia de se chegar a algum lugar sem sair de outro. Ou ainda de ser uma parada sem precisar deixar de ser o que sempre foi. Essa dualidade que evidencia uma cisão de personalidade é comum entre pessoas pretas, especialmente no sul. Esse não-lugar ao qual se é posto me deu margem pra falar de lá mesmo. Do espaço entre o céu e o chão.

Você está em SP há pouco mais de um ano, certo? Quais são as suas percepções sobre a cidade, e sobre a cena do rap de maneira geral?

A cena do rap em São Paulo é linda. Comporta toda a cena do Brasil, dando oportunidade e impulsionando propostas. É realmente muito foda.
Mas tem esse lance mercadológico que é um pé no saco. Ter que sorrir pra alguém que trabalha no Spotify, ter que tirar fotos com gente da revista X, ter que estar em uma festa chata de algum crítico de música… essas paradas que tu vê em filme memo, saca? Uma camaradagem piegas. Essa parte do bagulho é meio ridícula. A falta de preocupação com a arte também me cansa. No mais, acho muito foda estar aqui. Mas faria tudo lá de Pelotas se pudesse (risos).

Quais são as suas principais influências musicais?

Elas vão mudando, né? As constantes são (John) Coltrane, Miles (Davis), Dead Fish, Mos Def, Common, Black Milk, Mick Jenkins, Jay Prince, Kamau, Parteum, Emicida, (Mano) Brown… tem escritores e diretores também… quanto mais se vive, mais fica difícil de listar essas referências, porque no meu caso elas são cumulativas.

Quais os artistas dentro do rap contemporâneo (e da música contemporânea de maneira geral) que você admira?

Kendrick (Lamar), J. Cole, Goldlink, Ama Lou, Rapsody, Steve Lacy, Man I Trust, Natty Reeves, Buddy, Saba, Victor Xamã, uma galera. Também tenho escutado muito Puma Blue, acho Travis (Scott) foda.

Consegue listar seus 10 discos preferidos?

Sem ordem de preferência:

Kendrick Lamar / To Pimp a Butterfly

John Coltrane / A Love Supreme

Miles Davis / Kind of Blue

J. Cole / 4 Your Eyez Only

Dead Fish / Zero e Um

Puma Blue / Blood Loss

Parteum / Raciocínio Quebrado

Erykah Badu / Mama's Gun

Mos Def / Black On Both Sides

Toro Y Moi / Underneath the Pine

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