Crédito: Jean Furquim

Entrevista: Mattenie

Pedro Pinhel
Original Pinheiros Style
24 min readMar 24, 2024

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Mattenie é um dos rappers mais instigantes de uma nova safra nacional de artistas que representam o lado mais underground de um gênero que segue se reinventando — e exalando arte. Aos 31 anos, Mateus de Paula Netto Alves Vieira, a.k.a. Mattenie (pronuncia-se Matteniê), representa também sua cidade, Jacareí, e o Vale do Paraíba como um todo. A região tem sido um verdadeiro dínamo na projeção de MCs e produtores de alto nível, tão atentos ao que vem sendo criado no rap alternativo norte americano quanto ligeiros sobre nosso próprio quintal: discos clássicos e obscuros de música brasileira, referências e reverências aos nossos pioneiros do rap, crônicas baseadas em experiências próprias, sensibilidade de sobra e um senso de identidade fundamental. Mas o Vale do Paraíba não está sozinho nessa cruzada; artistas da Bahia, do Paraná, de Minas Gerais, Santa Catarina e de várias outras regiões que vão muito além do eixo Rio-São Paulo têm se conectado como nunca pra registrar parcerias e trampos que podem até ainda estarem limitados a seus nichos, mas que pouco a pouco vêm escrevendo os primeiros capítulos de uma história que dá toda pinta de ser o princípio de uma ‘nova’ era de ouro do rap underground nacional.

Trocamos várias ideias sobre rap, o Vale como celeiro de bons talentos, saúde, alimentação, cinema, literatura, café, ambições, coke rap, a cena do rap por aqui e pelo mundo afora. Ligeiro, humilde e consciente do alcance de sua arte e da força de suas ideias, Mattenie falou também sobre seus trampos Malbec e Fettucinne, de 2022, e Prensa, de 2023, respectivamente criados com seu conterrâneo Barba Negra e o carioca Goribeatzz, e sinalizou ainda um projeto pra 2024 com o curitibano Traumatopia — em três plays, três dos melhores produtores do nosso underground enfileirados. Nada mal, diz aí? Falamos ainda sobre sua incursão pelo rap latino dando nome aos bois — algo como nombrando los bueyes, no caso — e de que forma essa cultura mudou sua própria percepção de cidadão não apenas brasileiro, mas latino-americano. Só papo reto. Se liga:

OPS: Qual foi o seu primeiro contato com o rap?

Mattenie: Acho que antes preciso falar do meu primeiro contato com a música. No sentido de entender que gostava de música. Foi muito cedo, lembro que ganhei um CD do Offspring quando tinha uns 7, 8 anos. Tava morando com meus primos, Cauê e Dinho, que eram mais velhos e tinham acesso à MTV. Os caras eram mais velhos, do skate, conseguiam ir pra São Paulo comprar CD, e com isso fui entendendo as coisas que gostava. Começou com nu metal, System of A Down, Linkin Park, Limp Bizkit. Com uns 10 anos ouvi Eminem, que foi a ‘porta de entrada’. Aí já tava rolando Tim Maia também, mas quando ouvi Eminem entendi que gostava de rap, e não daqueles rocks. Aí vi a fita do Up In Smoke Tour. Já tinha ouvido o disco, mas quando essa fita chegou na minha mão foi o grande ‘Pá’. Mudou tudo, e eu passei a ser o carinha da fita, que mostra pros caras. Logo depois veio Racionais, Sabotage, tudo mais ou menos na mesma época. Aí já nem queria mais ouvir as outras paradas, pensei “mano, só gosto de rap”. Então de certa forma a culpa é dos meus primos. O Dinho, inclusive, eu cito em vários sons. Também me lembro que nessa época, na aula de português, tivemos uma tarefa que era ler uma poesia. Não precisava nem escrever a poesia, podia escolher uma que a gente gostasse. Lembro que escrevi a letra de “Noite Infeliz”, do 509-E. Inteira. Várias folhas, e tal. A professora não entendeu nada, né? A letra do mano que assaltou o posto! Não sei como minha mãe não foi chamada na escola. Lembro também da primeira namoradinha, pedi e ela me deu de presente o Racionais duplo (“Nada Como Um Dia Após O Outro Dia”). Aquele encarte cheio de foto dos caras na zona sul… tudo isso falando do rap como ouvinte. Fui entender que podia fazer rap um pouco mais velho. Foi quando conheci Quinto Andar, Slim Rimografia, os caras de Jacareí que faziam rap, o Incognitivos (A.X.L. e Quartã), pensei “se pá é possível”. Lembro do Du MC, que vi aqui em Jacareí. Ele foi o primeiro grande MC que vi na minha frente segurando um mic, exercendo a função. Aquilo mexeu muito comigo. Minha ideia nessa época era só gravar um som. Quem diria que hoje eu tenho mais de cinquenta, tá ligado? Lembro também de quando o Emicida entrou na minha vida, antes dele lançar o primeiro disco vi ele fazendo a “Vai Ser Rimando” ao vivo, comecei a me interessar pelo corre dele, comprei a (faixa/single) “Triunfo”, ainda tenho a primeira versão em casa. Daí por volta de 2015, 2016 me aproximei mais ainda dos MCs do Vale (do Paraíba), do tio Rato, do tio Ralph, rolou o S.P.L. (Sociedade dos Poetas Livres, banca do Vale com 12 MCs e 1 DJ), e o rap latino entrou na minha vida. Pude ver uma outra forma de fazer rap em termos de mensagem, e daí tudo aquilo que eu acreditava sobre rap e sobre ser MC meio que ruiu. Eu não queria mais ter uma Roc-A-Fella no Brasil, não queria mais ser o Eminem. Queria simplesmente ajudar as pessoas com a minha música, porque eu fui ajudado pela música. Aí comecei a desvencilhar toda a ambição e o materialismo da minha arte pra colocar somente o coração, e a estudar aquilo a ponto de não ter que usar a caneta pra escrever, de fazer um rap muito mais sincero, de chorar ouvindo rap… às vezes nem quero ouvir um determinado disco porque sei que vou chorar. E preciso estar muito concentrado pra ouvir um disco, não quero só ouvir trabalhando, tá ligado? Quero deixar aquilo ir sendo processado. Vejo todos esses momentos como viradas de chave influenciadas pelo rap, e fico ansioso pelas próximas (viradas de chave) que virão. Sei que em algum momento vai acontecer alguma outra coisa ligada ao rap na minha vida e eu vou falar “caralho, que sentimento único!”. Rolou isso recentemente quando ouvi o Cartagena (disco da dupla DJ Muggs e CRIMEAPPLE ), dei o play e falei “noooossa, era isso que eu queria ouvir!”. Bateu forte, e me deu muito gás pra fazer um rap.

Você é de Jacareí. Tem um movimento bem interessante de rap underground rolando no Vale do Paraíba. Como você vê essa cena?

Nasci e cresci em Jacareí, nunca vivi em outra cidade. E aqui tem uma cena foda de rap, conheci uma galera das antigas daqui, de São José…principalmente no final dos anos 80, começo dos 90, (o rap) era uma voz muito sinistra pra quem não tinha voz. Não tinha como postar um bagulho no Twitter pra falar o que você pensa, pra dar uma opinião. Nessa época o rap foi muito forte em várias quebradas, e no Vale não foi diferente. Mas hoje vejo que tem muito talento, tanto dos caras da minha geração como dos caras que chegaram depois. Tem umas canetas muito boas, mas vendo a vida de uma perspectiva diferente de outros lugares. E isso é muito comum, é o meio que faz você. O lugar que a gente nasce, os lugares que a gente faz rolê de final de semana, o contato que a gente tem com a natureza… isso tudo faz a gente ter uma percepção de vida interiorana, e lógico que isso vai refletir na caneta dos artistas. E tô falando dos MCs. Aí tem os caras da pesquisa musical, os produtores, tem vários muito foda. É uma terra rica, muito talentosa. A gente conversa muito, gosta pra caralho da arte que é feita aqui. Mesmo não tendo um percentual legal de artistas que conseguem sair daqui e serem ouvidos em outros lugares, a gente se entende muito bem na nossa arte. Uma vez um amigo viu uma foto dos tempo do SPL e falou “mano, o rap do Vale lembra os filme de máfia. O respeito entre as pessoas, as reuniões que a gente faz questão de fazer pra encontrar todo mundo…”. Esse bagulho me marcou, ficou na minha cabeça um tempo. Acho que é uma definição da hora.

Malbec & Fettuccine, seu disco com o Barba Negra, de 2022, é uma clara referência ao play Alfredo, parceria entre o Freddie Gibbs e o Alchemist. Quem são suas referências mais contemporâneas do rap gringo?

Vejo a ligação do Malbec & Fettucinne (com o Alfredo), mas o nome hoje tem um significado nítido e transparente: meus 30 anos, o jeito que eu quis fazer esse disco com o Barba. Ele trouxe o vinho pra janta, e eu fiz o rango. Achei esse nome muito da hora, e musicalmente não sei se vou conseguir entregar um disco que soe da mesma forma que esse, muito natural, muito sincero. O jeito de criar foi muito rápido. Daqui a 10 anos vou olhar pra trás e Malbec e Fettucinne vai significar tudo.

Sobre as referências gringas, os plays que saem hoje, fiquei muito tempo focado no rap latino. Quando conheci o rap latino, por volta de 2016, não quis saber de mais nada. Fiquei internado, querendo conhecer tudo. Como se tivesse entrado numa sessão nova da biblioteca. Fiquei abismado, tinha muita coisa foda e pouca gente falando disso. Fui estudar (rap latino) e quando voltei a ouvir rap norte-americano foi uma sensação parecida, pensei “caralho, olha quanta coisa saiu nesse tempo que eu tava ‘do outro lado’!”. Aí comecei a pesquisar, ouvir, e cheguei nos caras de Boston. Al Divino, Estee Neck, MichaelAngelo, nos colombianos, no CRIMEAPPLE, no Primo Profit, no RLX… esse aí eu gosto muito. É um menino bom, desses menino bom, de coração bom, não é esse coke rap. Ele é um moleque que passa uma energia muito da hora. E fui ver tudo que o Alchemist e o Muggs tavam fazendo. O Muggs é ótimo pra apresentar uma sujeira, um bagulho mais mocado. Lembro que no começo de 2022 o ‘Cartagena’, do CRIMEAPPLE e do Muggs, foi um disco que eu saí mostrando pros amigos, “caraio, cê gosta de rap, tem que ouvir isso aqui!”. E Griselda, óbvio. Lembro que conheci Rome Streetz no ‘Noize Kandy 3’, olhava aquela capa e falava “achei o Nego Max gringo”, ele é a cara do Nego Max. Isso tudo foi me estimulando a fazer um disco, porque fazia tempo que não fazia um ‘disco’.

Dá pra dizer que hoje temos artistas de várias partes do Brasil, entre MCs e produtores, que entenderam e conseguiram reproduzir tão bem quanto os gringos — se não melhor — essa estética do (estilo) drumless. Como você vê essa evolução do rap por aqui?

De uns anos pra cá dá pra ver que os caras tão fazendo esse som por aqui. E fazendo bem pra caralho, tanto os MCs quanto os produtores. E o público também tá se ligando. Vejo que tem um público que tá vendo essa fita acontecer lá fora, achando da hora. E isso é necessário, mostra que música não é uma parada presa ao tempo. ‘“Ah, esse som é noventeiro”. Eu até parei de falar isso, tá ligado? Porque não é isso. Esse som é foda, e é assim que tem que ser falado. Eu não entro no estúdio falando “vamo fazer um rap anos 90”, a gente chega no estúdio e fala “vamo fazer um rap foda”. E é esse rap que a gente gosta, e sempre vai gostar. A gente gosta de máquina, do garimpo, de achar um compacto mocado, e faz um bagulho foda em cima daquilo. Isso não vai se perder. O que não pode é gente falando que isso é um retrocesso, um atraso, que tá fora da moda, fora do tempo. Reconhecer que isso é rap e sempre vai ser rap é o mínimo por parte de quem tá no game. Uma coisa que eu queria muito é que os nossos ‘dinossauros’ do rap entrassem nessa fita (do drumless). Imagina o Dexter ou o Brown num drumless daqueles de contar história memo, bonito, de pôr a mão na consciência. Imagina o tio Black Alien, o tio Sombra… imagina esses caras botando isso na rua. Eu ia ficar impressionado. Daria um gás pra essa sonoridade, e eu como ouvinte ficaria feliz pra caralho. Sou um pouco saudosista, mas ao mesmo tempo muito grato de viver a época que vivo. Compartilhar o mesmo tempo e espaço com uns monstros que posso chamar de amigos, dar a mão, ter o número de telefone e trocar ideia, e ainda ter esses caras como referência. Gosto de estar na plateia, na frente de um palco, gastando energia, suando a camisa, cantando junto, e sei que isso nunca vai mudar. Já vi show do ‘Criolão’ na época que era DJ e MC, o Emicida das antigas era muito bom também, o Kamau… aulas de como ser MC, de como fazer um álbum, aquela ansiedade de comprar um disco que saiu direto da mão dos caras. Como consumidor dessa arte, sou muito grato.

Vejo no seu Instagram que você costuma ler muito. Como você vê a influência da leitura na sua caneta e na sua vida? O que você está lendo atualmente, e que livros recomenda pras dezenas de milhares de leitores do OPS que estão nos lendo agora?

A leitura é um bagulho muito forte na minha vida. Infelizmente não há muitos anos. Me considero um leitor tardio. Fui começar a ser nóia de livro por volta de 2012, já tinha 21 anos. A partir daí li muito. Teve um ano que li quase 40 livros. Trabalhava em outra cidade e passava uma hora e meia no ônibus todo dia. Aí era livro. Tinha o livro da mochila e o que lia em casa. Sempre aprendo muito. Hoje em dia é difícil receber as informações, os códigos… você liga a TV, não vai estar ali. Vai ouve a música do momento, ou numa roda de pessoas, não vai estar ali. No diálogo é mais fácil, entre duas pessoas. Com muita gente o assunto já vai divergir, os temas são mais comuns, coisas do cotidiano, mais banais. Você não vai estar falando dos códigos, das lições. Graças a Deus tenho amigos com quem consigo trocar ideia sobre a vida, e isso é muito importante. Mas não consigo trocar essas ideias todo dia, então tenho os livros. Vários manos que eu admiro e que quiseram deixar um registro, mas fizeram isso em formato de texto, deixaram pra humanidade. Olha o peso disso. Isso me ajuda muito. Às vezes você tá lendo um livro do século 16 escrito na Holanda, e cê fala “caralho, a vida é a mema fita”. O que muda é que hoje a gente tem celular, respira ar condicionado, pisa no porcelanato. Mas a vida é a mesma. E isso pra mim é mágico, essa simplicidade. Um bagulho mó simples. Com os livros eu aprendo muito sobre cotidiano, relacionamentos, comportamento humano, ambições, coloco mais lentes pra enxergar o mundão. E não é todo mundo que gosta de ler. Aí tento explicar isso, tá ligado? É importante a gente exercitar o músculo que é o nosso cérebro. Não adianta querer malhar só o braço. De uns anos pra cá tenho tentado ler muita coisa russa, os escritores russos. mas não gosto de baixar livro. Gosto de ler o que chega na minha mão naquele momento. Muitas vezes vou na livraria no intuito de comprar um livro russo e é caro, mano. Na minha condição não dá. Várias responsa. Então quando chega pelo sebo ou pela geladeira — já achei muito livro nessas geladeira — falo “nossa, é o que eu precisava ler nesse momento”. Guardo pra vida. Também gosto muito de filosofia. Nietzsche me ajudou muito a ser um leitor, mas principalmente a ser uma pessoa sozinha. A entender meu potencial solo. Não me apoiar em nada, não depender de nada. Se puder indicar algo pras pessoas lerem, é isso: Nietzsche, e os escritores russos. Atualmente tô lendo Gabriel Garcia Marquez, O Amor Nos Tempos do Cólera. Já é meu terceiro livro esse ano (a entrevista foi feita em março de 2024). Acho que sou um leitor de histórias. Gosto de boas histórias. De texto imersivo, que gera uma reflexão, um impacto. Meus amigo falam “caraio, outro livro?”, e eu falo que acho muito poderoso isso dos olhos estarem focados numa página com caracteres, e que juntando esses caracteres é possível realmente visualizar uma parada. Você deixa de enxergar as páginas em si pra realmente ver aquilo ali. Isso é um poder de criação sinistro. Dentro das coisas que eu estudo e que eu busco isso me ajuda muito, falo “olha o universo que eu entrei por alguns minutos”, é um devaneio. Que nem quando você tá dirigindo sozinho na estrada, curtindo um som, deu um trago e pensa “caraio, que que aconteceu nos últimos 10 minutos?”. A leitura é um exemplo muito foda disso. Às vezes assisto um filme que é a adaptação de um livro e penso “nossa, pra mim esse personagem era de outro jeito. Durante um tempo ele fez parte da minha vida e eu imaginei esse cara de outro jeito. Outras cores, outros lugares…”. E isso é o que me motiva a ler mais ainda. Essa busca do comportamento humano. Acho que a gente tem que se fortalecer, física e mentalmente. Não é fácil, mas vale a pena. Sentir tudo que tem pra sentir. E deixar isso de herança: pensamentos, registros. Fui entendendo que gosto muito de arte, de todas as formas de arte. Em cada expressão de arte eu consigo ser uma versão do Mattenie. No rap eu me expresso de um jeito, mas às vezes quero desenhar, pintar… Tenho certeza que quando for estudar teatro também vou ter uma outra veia totalmente diferente. São canais em que você consegue distribuir aquilo que quer comunicar.

⁠’Prensa’ faz referência ao café, mas me parece também uma crítica ao coke rap e às drogas de maneira geral. A faixa “Mec” faz diversas referências ao álcool como algo caído. A analogia faz sentido pra você? Qual a fita do café?

A analogia faz muito sentido. Não que eu não beba. Posso estar caminhando para não beber mais. Muitas pessoas no meio do rap gostam de associar a ideia da bebida alcóolica a um lifestyle, uma mostra de comportamento, porque várias pessoas vão se identificar com aquilo. No meu caso é o café, e é isso. Nem entro em pauta de “estou induzindo as pessoas a consumir”, tipo quem tá por trás desses grandes artistas. Nem entro nesse mérito. Mas é isso, somente isso. E tem essa identificação, né? Principalmente dos “30+”. E isso é muito louco. Quero que quem gosta desse tipo de rap olhe pra essa capa e pense “porra, talvez esse disco aqui tenha alguma coisa que eu vá gostar”. Só por ter colocado uma prensa francesa na capa. Quem gosta de café mesmo vai olhar e saber que é uma prensa francesa. E quem sabe o que é uma prensa francesa vai saber que ali tem um café bom. O cara provavelmente moeu o grão na hora que foi tomar, não botou açúcar no café… vários detalhes ali, a fita do café na capa. É o Mattenie lifestyle: curto café, apresento vários tipos pros meus amigos, convenço vários a tirar o açúcar e eles percebem a diferença, começam a comprar uns cafés de umas colheitas mais próximas, e acho louco poder passar um pouco dessas vivências pros outros. Porra, se você toma café três vezes por dia todos os dias e coloca açúcar, você tá consumindo muito açúcar. Esses pequenos detalhes eu acho muito importantes. Isso aí é muito eu. Consegui trazer um pouco disso no café. Se eu puder despertar a mente das pessoas que nem o café faz, olha que foda!

Mattenie e Killa Bi. Crédito: Matheus Melo

Por falar em coke rap, suas ideias são bem diferentes desse estilo hedonista, auto-referente e focado na grana e nas drogas que tá tão em evidência nos EUA e é bastante reproduzido por aqui. Como você vê essa cena?

Acho que cada um tem que cantar aquilo que vive. Escrever aquilo que vive, aquilo que faz parte, de alguma forma, da sua realidade. Respeito quem faz da sua arte um reflexo daquilo que vive. Claro, tem muita coisa que escuto nessa linha, mas isso não me motiva a querer fazer igual. Me motiva a querer colocar a minha verdade no som, uma realidade que outras pessoas possam se identificar. Eu quis fazer um rap pra ajudar outras pessoas a quebrar umas barreiras, e por vários meios diferentes. nem todo mundo faz isso. Tem gente que tá focada em ganhar dinheiro. Acorda e dorme pensando nisso. Isso sempre vai existir, mas eu não tento colocar isso na minha música. E sei que tem várias outras pessoas que tão nessa também. Gosto de ver o rap como um registro social do homem em um determinado tempo e espaço. Quando tô consumindo um rap desse teor lírico de realidade, de vivacidade, sinto que tenho que fazer uma análise daquilo: de como o cara vive, o que tá acontecendo na região dele… faz parte do jeito que eu gosto de estudar o rap, tá ligado? Da mesma forma que busco rap de outros lugares do mundo, porque tem rap no mundo inteiro. E o intuito de quem tá fazendo às vezes é da hora, contar uma parada, mostrar uma fita, fazer uma crítica, e não é porque é em outro idioma que não posso me identificar com aquilo. Analisar, mesmo que não seja minha realidade. Também por isso o rap é uma arte. Tem várias narrativas que eu acho foda pra caralho. Foi como quando conheci os (rappers) latinos, aquilo conversava bem mais comigo que vários raps norte-americanos e nacionais que tavam sendo feitos. Porque com essa geração do Emicida veio uma auto-afirmação muito grande pro rap, aí depois teve a geração Haikaiss / Cone Crew, que tinha outra linguagem, outra narrativa… quando eu escutei os latinos pensei “nossa, é isso aqui. Se for pra falar alguma fita, quero falar isso daqui”. O (rapper venezuelano) Canserbero pra mim foi o melhor (o artista morreu em 2015). O jeito, o intuito, “o que que eu quero fazer com essa música? O que eu vou falar? Como vou construir a história?” Toda a argumentação pra que a pessoa ouça aquilo e traga uma fita boa pra vida, que caminhe de forma mais honesta e digna. Ouvi e pensei “caraio, podendo fazer isso, eu vou querer fazer um bagulho que não sou eu?” O rap é uma ferramenta de mudança pessoal. Vou querer falar de uma marca que já é paga pra uma agência de marketing falar dela?! Ou vou ficar falando de umas coisas que não vivo? Tô fazendo um disco com o Trauma (Traumatopia, produtor curitibano), vão ser umas histórias sobre minha realidade, da minha região, de coisas que vivi na rua durante alguns anos. Hoje sou mais caseiro, mas tive essa fase. E é a primeira vez que vou colocar isso nos raps. Eu sei tudo o que tô falando ali. Não tô inventando nada. Acho até que as pessoas podem ouvir e falar “ó o Mattenie, tá sujão!”

Como rolou a conexão com o Gori (Goribeatzz, produtor carioca)? No último disco dele você já está em uma das faixas. As sessões de ‘Prensa’ foram presenciais?

Meu primeiro contato com o Gori foi no disco A Rima É Ímã, Volume 3 (2021), da dupla Rato e Ralph, que ele produziu. O Ralph me chamou pra participar da faixa “América do Sul”, e foi a primeira vez que rimei num beat dele. Depois de um tempo ele me chamou pra participar do disco Adepto do Princípio (2023), aí eu fiz a “Balacera” e gostei pra caralho. Na época eu tava gravando o Malbec (…). Quando estava gravando o Prensa, na sessão com a Bianca e o Galf, ela nos convidou pra fazer uma faixa (com ela) pro disco do Gori, aí nasceu a “Vida Adulta”, faixa que entrou no disco Gioia Tauro, de 2023. Eu tava vindo desse estudo dos gringos, o lance de disco de MC e produtor. Pensei no Gori mas pensei “será que ele vai topar?”, fiquei naquelas. A gente nunca se trombou pessoalmente. Daí fiz o convite, falei do trampo com o Barba e ele me deu acesso à “pasta mágica”. Tinha umas 30 batida nessa pasta. Aí comecei, “ó, gostei dessa aqui”, e ele “escolhe uma lá e escreve”. Aí fiz a “Mec”. Escrevi os dois versos, que começam do mesmo jeito. Era pra ser só eu ali. Ele curtiu pra caralho e falou “vou fazer o disco”. O processo de escrita não foi tão rápido, e infelizmente ainda não nos conhecemos pessoalmente. Ele não conseguiu colar em nenhuma sessão do disco, mas todas as trocas de ideia durante a criação foram da hora. As opiniões dele em relação às participações, ele queria que eu colocasse uns feat porque o disco tava muito ‘solo’. Canetei tudo ali sem precisar ouvir a (guia) de ninguém. E ficou muito da hora. Quero ver se intimo ele prum novo!

Você chegou a comentar comigo que “sabe que seu rap não chega em tanta gente assim, embora chegue em gente legal”. Por que você acha que isso acontece? E qual sua visão sobre as plataformas de streaming?

Essa pergunta é complicada. Não sei porque isso acontece. Já me perguntei muito a respeito. Mas acho que da mesma forma que tô ali na fila do mercado fazendo uma compra e vejo que meu carrinho tem vários itens do hortifruti, umas paradas selecionadas com cuidado pensando nos ingredientes daquele produto… consigo hoje fazer essas escolhas. E percebo que várias pessoas gastam bem mais do que eu consumindo coisas de péssima qualidade. Muita coisa industrializada, ultraprocessada, umas coisas zoadas, que não vai nutrir. E eu aceito aquilo, tento entender. Olho pra minha esposa, pro meu filho, pros meus amigos e penso “vou trocar essas ideias dentro do meu círculo”. Aquela pessoa provavelmente ainda não entendeu alguma coisa que eu entendi. E talvez nunca entenda. A música é um pouco isso: hoje tá muito fácil ver a biblioteca ali, ter acesso à loja de disco online. E você escolhe o que você quer ouvir. A base sempre vai ser o público, A culpa de falar groselha não é do MC. O problema é quando você tem 100 mil pessoas adorando ouvir aquela groselha. Isso precisa gerar uma reflexão. Tem várias outras “mãos invisíveis” conduzindo o mercado? Lógico que tem. A gente sabe que tem. Mas tem o indivíduo ali. A escolha é dele. Vejo que ‘ficar sozinho’ pras pessoas é um incômodo enorme. Parar, pensar, observar, refletir. Eu fiz essa escolha pra mim lá atrás. Tem gente que vai seguir fazendo as escolhas no automático. E nem só com a música, pode ser programa de TV, exercício físico, o jeito de se vestir. Isso tem a ver com o meio em que a gente vive. Pode ser que em outros países não seja assim, mas eu vivo aqui. Infelizmente não viajei muito, e percebo que aqui as pessoas não refletem muito sobre as escolhas que fazem, o que consomem. Não é somente o que comem. Mas o que assistem, o que pensam. E ter noção do peso disso te faz fazer outras escolhas. Eu fiz. E sei que ainda vou abrir meu olho pra várias outras coisas. Esse é o grande barato de acordar todos os dias.

Falando do streaming, acho complicado. Demorei pra colocar minhas músicas no Spotify, fui contra durante muito tempo. Achava que só estar no YouTube era o suficiente. Sou meio atrasado nessas paradas. Entrei no Instagram em 2018. Não queria. Sou meio artesão, queria que meus raps fossem tipo quadros na minha parede. E as pessoas viessem me visitar e vissem os quadros, e a gente trocasse umas ideias sobre aquilo. Nunca tive a ambição de que meus quadros estivessem num museu, pras pessoas visitarem quando quisessem, sem poder trocar uma ideia comigo. Tenho uma visão ainda meio assim do meu trampo. Demorei pra entender que aquilo (streaming) podia gerar um dinheiro, e que tinha meios de esse dinheiro vir numa fatia maior pra mim. Tudo isso ainda tô aprendendo. Sinto que ainda não tenho muita propriedade pra falar sobre isso. Até porque é uma coisa que não pesquiso muito. Entendo que hoje essa é a ‘loja’ onde eu exponho e vendo minha música. Mas vou me esforçar muito pra não depender deles nos próximos anos. Existem meios pra eu fazer isso, e eu sei quais são. Eu posso, sim, querer voltar a vender CD físico. E por eu não depender do dinheiro que a música me dá, se eu conseguir financiar essa produção de forma paralela, vou financiar. E quem quiser consumir minha arte pode escolher como consumir. Fico puto, sim, com o a merreca que recebo. Isso me deixa injuriado. Mas sou da época em que o YouTube não pagava nada. Não tenho uma visão tão comercial com o que faço, e isso é um ponto muito singular na minha arte.

Na faixa “Bourbon Amarelo” você diz que o filme A Vida É Bela te fez chorar que nem criança. Que tipo de cinema faz sua cabeça? Pode citar cinco filmes que fizeram você chapar?

Sinto que ainda preciso estudar muito cinema. Porque gosto pra caralho, mas ainda me sinto leigo. O que chegou pra mim foi muita coisa hollywoodiana, e fico feliz quando eu consigo furar um pouco essa bolha. Não conheço movimentos, aqueles bagulhos mocados memo, mas gosto muito. E assim como foi com os livros, tive esse olhar tardio pros filmes. Antes eu via como passatempo, mas entender o bagulho como arte foi um pouco mais pra frente. Mas posso falar de filmes, assim como A Vida É Bela, um filme que me ensinou muito. Talvez se eu tivesse assistido antes, quando ainda não era pai, não teria tido o mesmo efeito. E tem a fita dos filmes de máfia também, né? Os filme de máfia foram os que eu mais assisti. Os três Poderoso Chefão, Goodfellas, Casino, a coisa do Scorcese ali… gosto muito desde moleque, assisti muito. Depois, com outro olhar, achei muito foda. Gosto muito de Scarface, a lição que tem ali do cubano que foi pros Estados Unidos atrás do capitalismo, encheu o cu de dinheiro e pensou “então é pra isso memo que cês quer ser rico?”. Sua esposa não pode engravidar de tanta droga que usa, seu amigo te trai… isso eu acho muito foda. Outro filme que é o que mais assisti nos últimos cinco anos é o La Haine, um francês em preto e branco que, porra, toda vez que vejo fico “caralho, que filme foda! Como não tinha visto antes?!”. Assisti um argentino também chamado Clímax, do Gaspar Noe, e é impressionante o efeito, a sensação da parada no seu organismo. É viciante quando você tá dentro de um filme e aquilo vai mexendo com as suas emoções. Teve também o momento em que eu conheci a obra do Jodorowsky, já faz uns dez anos. O primeiro foi A Montanha Sagrada. Depois vieram outros. Aquele jeito de fazer cinema, aquela simbologia, aquela lavagem cerebral, a química, a mística… totalmente underground, longe do hype, sendo influenciado por tudo o que tava acontecendo ali naquela época — com certeza muita droga. mas aquilo é muita arte. Lembro que foi um choque de realidade, tipo “tem gente que faz cinema assim? Então por que eu não posso fazer um rap assim?”. Lembro também que, estudando espanhol, cheguei num filme chileno chamado El Hombre Mirando al Sudeste, também muito foda. Mas ainda tenho muito pra aprender. Preciso entrar mais nesse universo, até porque trampo com audiovisual hoje. Se fosse fazer uma faculdade hoje faria cinema, não necessariamente pra dirigir um filme. Tem outras áreas ali dentro em que eu me vejo contribuindo. Quando a gente vê aquela quantidade de nome que aparece ali no final do filme, aquilo é real. Sei que poderia exercer algumas dessas funções, estudar melhor. Também vejo isso como uma ferramenta pra gente passar a nossa visão pra alguém. Admiro muito.

⁠Que outros estilos musicais além do rap você costuma ouvir? Quais foram e são suas maiores influências musicais ao longo da vida?

Tem uma curiosidade: eu descobri que não gostava de rock quando chegava na casa de uns amigos que realmente gostavam e os caras perguntavam “cê gosta do que, Metallica? Iron Maiden?”, e eu falava que não. Eles perguntavam “do que você gosta então?”, e quando eu dizia eles me tiravam. Pros roqueiros aquilo também era um bagulho novo, Slipknot, System of a Down. Mas pra esses caras mais antigos às vezes não gerava uma identificação tão grande, e eu ficava meio “caralho, eu achava que era rockeiro”. Isso com 8, 9 anos. Aí fui descobrir o que era rap. Daí só ouvi rap. Rap, rap, rap, até mais ou menos a época da pandemia. E reggae. Principalmente Bob Marley, que teve uma influência muito forte na minha vida desde uns 13, 14 anos. Mas não ouvia outras coisas jamaicanas, ouvia Bob. A mensagem dele foi muito importante. Cresci sem pai, e sempre falo que Bob Marley foi uma das três figuras masculinas que me educaram com suas respectivas artes (em áudio posterior o artista creditou Jesus cristo e Nietzsche como as outras duas). Mas fora isso era só rap. E durante a pandemia precisei de alguns recursos pra me acalmar. Entendi que não ia poder estar nos lugares, na casa dos meus amigos ou no estúdio fazendo rap, então entendi que precisava dar uma acalmada do rap. Aí comecei a ouvir muito jazz, muito samba, muita bossa nova, MPB… e nessa época me encontrei muito, dei uma acalmada memo. Porra, eu tinha quase 30 anos quando fui realmente conhecer a música do Adoniran Barbosa. Imagina o efeito disso. Foi mágico esse mergulho que eu dei em vários bagulhos e que precisa continuar, porque sei que tem vários sons que ainda não conheço. Isso me ajudou muito, e hoje reflete na minha música. Esses raps que não são rap, esses grandes códigos e salves que tem em várias músicas. Quando conheci cúmbia e salsa também falei “caralho, olha isso!”. Me identifiquei muito quando conheci a cultura latina, quando me vi nessa fita falei “não, mano. sou latino. sou fruto dessa terra, desse continente invadido, que matou várias pessoas, e sou filho de um bagulho que não era pra ser assim”. Quando você vê um boliviano, quando você vê um amazonense, aí você sabe como era pra gente ser. Somos um povo de um ‘continentão’ muito foda. Entender isso foi importante, não só musicalmente mas culturalmente. Hoje tenho um entendimento do espanhol muito melhor do que eu tenho do inglês. E fico muito feliz por ver o quanto ter estudado essa parada enriqueceu a minha vida.

Essa eu faço pra todos os entrevistados, é a “pergunta difícil”: qual o seu top 10 de discos de rap? O critério é 100% seu.

Muito difícil! Sacanagem essa fita aí. Não tem como fazer Top 10 da vida. Tenho certeza que no outro dia iria olhar a lista e falar “faltou isso, isso e isso”. Mas se você me permitir vou fazer um Top 10 de rap em espanhol. Sei que é uma fita que não chegou em muito brasileiro que gosta de rap e poderia curtir essas paradas, porque eu gostei muito. Vejo o quanto os caras estudam, o quanto a caneta deles é real, e hoje tenho muita vontade de fazer uma trip pela América do Sul por conta disso. Pude ver um show do Lil Supa aí em São Paulo numa festa onde os brasileiros deviam ser uns 30% do rolê — o resto era venezuelano, boliviano, equatoriano, chileno, argentino, tá ligado? De graça! O bagulho foi foda, show de rap de suar a camisa memo, todo mundo ali curtindo, eu sabia cantar todos os sons. Pra mim aquilo foi que nem quando vi Racionais. Então se eu puder deixar essas indicações, não é nem um Top, mas são dez discos que foram muito importantes pra minha caminhada. Escuto todos até hoje, algns mais antigos e outros mais recentes, só de MC brabo, com produção foda, estilos que a gente não ouve tanto hoje em dia. Tudo muito bem feito, muito foda, e espero que as pessoas também gostem.

Canserbero — Muerte (Venezuela)

Canserbero — Vida (Venezuela)

N. Hardem — Verdor (Colombia)

Lil Supa — Yeyo (Venezuela)

Dano — El Hombre Hace Planes, Díos Se Ríe (Argentina/Espanha)

T&K — Writing Classics (Argentina)

Urbanse — Literal (Argentina)

Rxnde Akozta — Outlet (Cuba)

Portavoz — Yo Escribo Rap con R de Revolución (Chile)

Boricua Guerrero — First Mission (Porto Rico)

Norick — Karma (Peru)

Foyone — La Jaula de Oro (Espanha)

Mattenie e “tio” Rato. Crédito: Danilo Major

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